O valor da leitura
1/02/2023, por Redator UniPaulistana
*Por Giselle Bueno
Paulo Freire elaborou uma concepção crítica da leitura que merece ser lembrada, pois vivemos imersos num fluxo frenético de textos, orais ou escritos, que, de certo modo, tecem nosso cotidiano e nos desafiam como o fazia a esfinge de Tebas: “decifra-me ou devoro-te”. Circulam diariamente notícias de jornal, obras de ficção, debates sobre política, diálogos de séries televisivas, falas de influenciadores, vídeos publicitários, conversas familiares e outra infinidade de gêneros textuais que interpelam um país ainda não de fato convencido do poder e da riqueza da leitura.
Freire parte do princípio de que a criança não alfabetizada já é capaz de ler. Para ela, os textos se encarnam em elementos da vida imediata, como o canto dos pássaros, os movimentos das nuvens, o cheiro das flores. A ideia é a de que o ato de ler, em sentido amplo, antecede a leitura da palavra escrita, de sorte que haveria uma experiência originária, profunda e criativa, de leitura do mundo.
Introduzida a alfabetização, a dimensão do real permanece atuante, pois a ação de ler não se consuma na mera decodificação de palavras, mas exige seu prolongamento na leitura do mundo. As duas formas de leitura encontram-se conjugadas. Para ler bem os textos, escritos ou falados, é preciso ler bem a realidade. Para ler bem a realidade, é preciso ler bem os textos. Ler e viver são gestos visceralmente imbrincados.
Outra ideia de Freire é a de que a apreensão crítica da importância do ato de ler se forma, entre outros fatores, com o próprio exercício da leitura. Quanto mais e melhor o leitor lê, mais e melhor percebe o valor da leitura e incrementa suas competências leitoras. Isso se relaciona com o fato de que a prática é crucial para todo ato de conhecimento. Como aprendemos a ler bem? Lendo. Se não nos dispusermos a conviver com nossa ignorância, com erros e limites de compreensão, provavelmente leremos pouco. Essa impressionante lição de humildade da leitura vale para muitas coisas da vida. É quase inevitável recordar aqui uma passagem clássica de Grande sertão: veredas, em que Riobaldo diz que viver é perigoso porque “aprender-a-viver é que é o viver, mesmo”. Não aprendemos a viver primeiro, para depois passar pela vida como peritos que sabem o que estão fazendo. Aprendemos a viver, vivendo. A leitura guarda mais esta semelhança estrutural com a vida: em ambas, é preciso aventurar-se.
Por fim, a leitura, a escrita – e também a fala – correspondem a momentos indissociáveis do processo de transformação da realidade e da própria linguagem. Segundo Freire, ao ler textos e mundo, podemos reescrevê-los ou redizê-los, transformando-os. Quando, por exemplo, o leitor lê um texto escrito e o interpreta criativamente, de algum modo o reescreve. Em certa medida, o leitor é autor de cada texto que lê; é ele quem constrói possibilidades ali contidas. Ler, reler, redizer e reescrever são ações que possuem uma força seminalmente transformadora. Nada desprezível, portanto, o valor da leitura.
* Giselle Bueno é Doutora em Letras e docente do Centro Universitário Paulistana – UniPaulistana