Alzheimer: uma cruel brincadeira de morto-vivo
26/09/2024, por Redator UniPaulistana
O que é a vida do homem senão a sua história pessoal, suas memórias, os seus registros de vida, sua personalidade. Tudo aquilo que ele amealhou ao longo de sua existência determina quem ele é, aquilo que o personifica, que marca a sua identidade perante o seu grupo de convivência, os seus afetos, os seus papéis, e que alzheimer, pode levar embora.
O sentimento de falibilidade compreende a capacidade do homem em constatar que, em algum momento, deixará de existir, que não mais pulsará e só será uma representação perante o seu grupo social pelo legado deixado, pelo que edificou, pelos seus exemplos, pela história que ficou escrita – não necessariamente positiva e valorizada.
Será lembrado e esquecido pelos seus à medida que, geração após geração, cada vez mais, tornará o traço da sua existência apenas uma linha sem expressão, como um risco leve feito a lápis numa folha qualquer.
Suas verdades, seus pontos de vista, suas paixões, seu orgulho, seu ego se desvanece e nada mais restará do que o registro de suas obras e seus feitos, da carga genética perpetuada pelos que o sucedem, pela memória dos que o conheceram, pela inscrição em uma lápide. Nada mais.
Pela capacidade de prever a sua morte e pela incapacidade em gerenciar esse evento, o homem busca, desde muito, a pedra filosofal, o elixir da longa vida, a fonte da juventude e o poder da vida eterna.
Essa é a resposta fundamental buscada no exercício de sua fé pela transcendência da vida física, pelo mundo perfeito onde a morte não existe, objeto de estudo da antropologia que aponta muitas evidências dessa busca desde os primórdios da humanidade, em ritos e adorações.
E de todas as espécies animais, apenas ele, o homem, dedica-se a essa busca – certamente por ser o único capaz de prever tal evento.
As doenças abreviam a vida e tantas vezes precipitam uma trajetória existencial longa, levando a uma precoce sucumbência. O medo da doença pelo medo da morte faz o homem investir em tecnologia química, em poções, drágeas ou cremes, seja pela intenção de retardar o seu fim, seja pela intenção de evitar um processo que o leve a ele.
A alquimia dos tempos modernos dá a garantia de longevidade, mas também cobra o seu preço. Muitas patologias são consequências dos processos utilizados na indústria alimentícia que torna antinaturais as ações elementares da própria sobrevivência, mas esse é um assunto para outro artigo.
O Mal de Alzheimer é uma patologia degenerativa que leva a pessoa a perdas progressivas de suas memórias, de suas referências, de seus papéis, de suas conexões afetivas.
A pessoa acometida desse mal morre todos os dias um pouco, até tornar-se uma espécie de zumbi, onde a vida se resumirá a um encarceramento no próprio corpo que ainda pulsará, porém sem referências de existência, sem a consciência de que se está vivo.
Talvez essa seja a forma mais cruel para morrer, se é que há outras maneiras que se possa propriamente chamar de desejáveis.
Para exemplificar o mal de Alzheimer para quem é acometido por essa doença, podemos pensar num smartphone moderno e sofisticado, com muitos recursos, porém, sem esses recursos.
Um smartphone com grande capacidade de processamento, mas que não processa, com boa capacidade de memória, mas que não armazena, com agenda multitarefas que não salva os registros inseridos, com wi-fi sem conexão, com aplicativos que não se aplicam, com antena sem sinal.
Ou seja, ele existe, mas não existe! Vivo, porém morto!
Dubito, ergo cogito, ergo sum, ou seja, “eu duvido, logo penso, logo existo”. Essa foi a conclusão do filósofo francês Descartes, quando ao duvidar de sua própria existência constatou que a consciência do pensar afirmava essa condição.
O portador do Mal de Alzheimer, num dado momento e pelo avanço da degeneração, é incapaz de reconhecer-se. Logo, non dubito, non ergo cogito, non ergo sum.
Recordo que na minha infância costumava brincar com outras crianças de uma brincadeira chamada morto-vivo.
Alguém comandava a brincadeira alternando aleatoriamente o comando verbal “morto ou vivo”, e então as crianças agachavam ou ficavam em pé, conforme a ordem dada.
Quando penso em quem padece do Mal de Alzheimer imagino essa brincadeira, cujo efeito ao comando, independente de qual seja, a partir de um determinado momento, se reduz ao comportamento “morto”, ainda que esteja no cenário da brincadeira.
Sob a perspectiva dos que assistem o padecimento de quem é acometido por esse mal, o sofrimento pode ser ainda maior. Não ser reconhecido, por exemplo, por quem te cuidou pela vida, trocou suas fraldas, te alimentou, te fez dormir, te afagou, te contou histórias, levou à escola, conduziu pelas mãos, ensinou os caminhos da vida, é algo realmente muito triste.
Os registros de memórias dos que convivem com o adoentado fazem com que essa tristeza seja vivida a cada lembrança, o que provavelmente não será, pela ausência de registros, sentido por quem padece do mal.
Pode-se definir esse estado como um velório de corpo presente (vivo-morto) cujo sepultamento será determinado por circunstâncias não propriamente previsíveis, que eleva a angústia e o sentimento de impotência dos que velam, ante o fato e a constatação de falência.
O Mal de Alzheimer não tem um prognóstico favorável pelo desconhecimento de sua reversibilidade e por intervenções ainda paliativas e incertas. As condolências pelo passamento são renovadas a cada dia, a cada bom dia sem resposta, a cada ato agressivo, a cada negação de si ou do outro, pela constatação do inanimado, pela luz que se apaga, pela vida que se esvai, pelo cessar da brincadeira. Vivo-morto, morto-vivo.
Prof. Paulo Madjarof Filho
Prof. do Centro Universitário Paulistana – UniPaulistana