Alzheimer: desmontando o quebra-cabeças
25/09/2024, por Redator UniPaulistana
Nunca me aconteceu isso antes – disse minha mãe ao acordar na madrugada para ir ao banheiro. De fato as experiências tornaram-se únicas e a percepção sobre os eventos cotidianos passaram a assumir um certo ineditismo. O Alzheimer evoluiu para um estágio de despersonalização, cuja existência se resumiu às reminiscências fragmentadas de uma história de vida.
O seu lugar, as suas coisas e seus afetos, tornaram-se sombras de uma mente confusa e quase sem referências. Um quebra-cabeças cujas peças são paulatinamente retiradas, desconfigurando a imagem antes coerente, alegre e colorida.
O seu legado de mulher dedicada e altruísta justifica a consternação dos seus, ante a penúria e evolução galopante da patologia. Em raros lampejos, demonstra a consciência sobre sua desconstrução e lança perguntas de inconformação pela constatação do que sente – e sobre o que já não é mais capaz de sentir: “O que está acontecendo comigo? Que lugar é esse? Onde “eles” foram?” Uma alusão aos seus afetos que sequer consegue se lembrar.
Penso, em analogia a essa situação, a experiência por vezes vivida por tantas pessoas, quando no trajeto de automóvel da cidade de São Paulo ao Litoral Paulista, se deparam com um cenário transformado pela densa neblina, comum às regiões serranas.
Até um certo trecho do percurso, o céu se apresenta limpo e a visão da paisagem é plena, para então, subitamente, ao passar pelo trecho de serra, o motorista ter unicamente como orientação, a sinalização dos chamados “olhos de gato”, colocados nas faixas da pista propositalmente para essa finalidade. Sequer “existe” às margens da rodovia, a paisagem, o céu, a luz. Quando muito, outros automóveis surgem como sombras quase indescritíveis em luzes opacas de suas lanternas.
A diferença de quem padece do Mal de Alzheimer em relação a analogia apresentada, é que quem percorre o trecho nebuloso de serra, lida com uma angústia breve e sabe que adiante se descortinará um céu limpo e uma visão plena, pelo resgate de sua segurança e a continuidade de sua viagem.
Já para a pessoa que sofre com a gradativa e continua perda de memória, o sentimento de medo expresso com frequência, indicam a incerteza do caminho e a insegurança diante do que sequer é capaz de reconhecer – uma viagem cujo destino é incerto e a neblina é permanente!
O Alzheimer é uma doença sistêmica que não afeta somente a pessoa portadora desse mal, mas principalmente, as pessoas próximas que convivem com a pessoa afetada. Desafia o entendimento e a tolerância daqueles que se mantêm presos às antigas referências de quem a pessoa foi, pela incompreensão das inabilidades impostas pela própria doença.
O doente é incapaz de lembrar-se do que disse ou fez numa ínfima fração de tempo, tornando-se repetitivo em suas falas e comportamentos. Esquece a refeição realizada e diz sentir fome, esquece que foi ao banheiro, referindo essa vontade novamente. Nega afirmativamente o que sentiu e o que viveu segundos antes.
Se o sofrimento humano presume uma causa conhecida ou a consciência despertada para essa causa, seja esta a representação de qualquer evento ligado à sua vida, podemos inferir que o Mal de Alzheimer tem um efeito efêmero para quem padece desse mal.
Ainda que o doente refira sua agonia em momentos de reconhecimento de seu estado, esses momentos são fugazes e logo esquecem a própria dor. Também isso ocorre para as emoções positivas despertadas, quando um presente dado repetidas vezes, causa uma manifestação de contentamento e felicidade sempre que é ofertado.
A memória do homem é a principal referência de sua própria existência. Sem esse fundamental atributo, seriamos incapazes de aprender, desenvolver habilidades, produzir ou amar. As experiências se resumiriam aos momentos vivenciados exclusivamente, e aos instantes de suas manifestações.
Laços e vínculos afetivos seriam extremamente parciais e de baixa duração, limitando suas ações e a capacidade de autodefesa, analogamente a certas espécies de peixes cuja memória sequer dura mais do que dois segundos!
* A Organização Mundial da Saúde alerta para o crescimento de casos de demência por Alzheimer em todo o mundo. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, 1,2 milhões de pessoas padecem desse mal e há estimativas de um aumento significativo dessa população nos próximos anos. A conscientização da população sobre o manejo e cuidado com quem sofre desse mal, é marcada pelo dia 21 de outubro, instituído como o dia Mundial da Doença de Alzheimer.
Prof. Msc. Paulo Madjarof Filho
Psicólogo, Mestre em Psicologia e Prof. do Centro Universitário Paulistana – UniPaulistana